
S. Martinho, juntamente com a Carapinha, que foi constituída em curato nos inícios do século XVII, fazia parte do senhorio de Pombeiro da Beira e, no final de Oitocentos, ainda não havia perdido inteiramente a sua ligação secular com aquela freguesia, “porque ali [ia] sempre tomar quinhão nas assemblêas eleitoraes”.
Nos fins do século XV, a Sanguinheda, acompanhada de uma extensão territorial na atualidade impossível de determinar, foi separada do senhorio de Pombeiro e Simão da Cunha, terceiro filho do 5.º donatário de Pombeiro, instituiu ali um morgadio que, por testamento datado de 27 de Outubro de 1535, legou a sua irmã, Dona Inês da Cunha. Embora continuando-se o senhorio nos de Pombeiro, o domínio transitou para os senhores de Melo.
A povoação da Sanguinheda, hoje um simples lugar, funcionava como sede das funções comunais e era lá que se encontrava a casa da câmara, tinha assento o juiz, o vereador, o escrivão da câmara e o do judicial; porém, o edifício da igreja encontrava-se distante, em local ermo, construído, como tantos outros, fora do povoado, para estar no meio da circunscrição eclesiástica. Erguia-se nas traseiras da colina em que assenta S. Martinho, entre pinhais, ao lado da antiga estrada da Beira. Era então designada pelo nome de S. Martinho da Sanguinheda.
No princípio do século XVII, a igreja passou para um pequeno lugar chamado Póvoa, que acabou por ficar com o topónimo de S. Martinho da Cortiça. O prior, na Informação Paroquial de 1758, descreve desta forma a transferência da igreja paroquial: “Para que a igreja ficasse mais acomodada a todos os fregueses a mudaram do condado da Sanguinheda para o de Pombeiro para um monte que está entre a Cortiça e a Venda Cimeira e ali na borda da estrada esteve muitos anos, mas por ficar exposta a roubos pelo descampado, e alguns padeceu, como também ruínas, de que desgostosos os fregueses cogitaram de a mudar para o lugar da Póvoa, onde agora está desde o ano de 1618 e enquanto se não lavrou, expiou esteve o Sacramento na capela de Santo Amaro da Cortiça, por cuja ocasião perdeu o nome de S. Martinho da Sanguinheda e assim vulgarmente se chamou S. Martinho da Cortiça. É o lugar da Póvoa, sítio aprazível ainda que pouco plano, por estar na raiz de um pequeno monte que chamam o Cabeça Gorda, cercado de dois vales povoados de vinhas, pomares e bosques” [grafia atualizada e desdobrada].
Aquando das lutas liberais, no dia 4 de agosto de 1832, vindo de Abrantes e conduzido pelos “corcundas” (absolutistas), chegou à Ponte da Mucela, em direção ao norte do país, um comboio de 20 carros repletos de pólvora; no dia seguinte resolveram fazer uma paragem na Eira do Forno, já perto da Cortiça.
Envolveram-se em renhida luta com os “malhados” (liberais) e o carregamento da pólvora acabou por explodir na zona da Catraia dos Poços, perto da Serra da Sanguinheda, longe das casas.
Este incidente regional permitiu aos apaniguados de D. Miguel levarem a cabo perseguições, incêndios (a povoação da Cortiça foi incendiada), prisões, fuzilamentos e ficou conhecido pelo nome de “queima da pólvora”.
Depois do senhorio ter entrado na posse dos Castelos-Brancos, em consequência de D. Maria de Briteiros da Cunha, que após a morte de seu irmão se tornara 9.ª senhora de Pombeiro e seu termo, haver casado, em segundas núpcias, com D. António de Castelo-Branco começou a fazer-se sentir na zona uma cada vez mais acentuada decadência, dado que a família passou a conceder pouca importância à administração da casa de Pombeiro; apenas aparecem a morar na terra figuras secundárias, como é o caso de D. Nuno de Castelo Branco que era bastardo, como se deduz do seu testamento feito a favor de estranhos; face à sua condição de filho ilegítimo viu-se condenado a viver e a morrer nas longínquas serranias da Beira. Tratava-se de um irmão consanguíneo de D. António de Castelo-Branco da Cunha, o então 11.º senhor de Pombeiro.
Foi este D. Nuno, prior da freguesia, falecido a 11 de Setembro de 1642, o responsável pela construção da atual igreja no tempo que mediou entre a sua nomeação para a paróquia, no ano de 1617 e a bênção do edifício, acontecida no dia 28 de Maio de 1624. Marcou o templo, que tem por titular S. Martinho (bispo), com o brasão de armas da família, o dos Cunhas (com a pala das cunhas à esquerda), tanto sobre a porta principal, como no arco cruzeiro e o leão dos Castelos-Brancos sobre o portal da capela da esquerda e no púlpito.
O antigo templo não foi demolido e, durante alguns anos, serviu para nele se enterrarem os mortos; contudo, o abandono progressivo a que foi votado acabou por o inutilizar.
A igreja atual, edifício amplo construído em grés regional que se encontra no subsolo para os lados da Sanguinheda, ao meio do paramento do flanco da direita apresenta uma forte torre de dois corpos; contudo, no arco triunfal e nas portadas das duas capelas existentes no corpo da igreja, foi utilizado calcário coimbrão, certamente aparelhado em oficinas daquela cidade.
Na frontaria, muito simples, para além das armas dos Cunhas, ornamenta-a um nicho com a imagem de S. Martinho, esculpida pelo imaginário António Gomes, “criado de João de Ruão” e que com as das santas Águeda e Luzia deviam pertencer ao altar da igreja velha. Sabe-se que o prior António Fernandes de Oliveira, a 16 de Maio de 1582, encomendou àquele discípulo do mestre da renascença coimbrã um retábulo destinado à capela-mor, com a obrigação de o entregar pronto até ao dia de Todos os Santos; o altar devia medir quinze palmos de alto e doze de largo, com S. Martinho a ocupar o lugar de honra e, em encasamentos mais pequenos, Santa Luzia e Santa Águeda.
No interior, lateralmente, abrem-se, no corpo da igreja, coberta por abóbada de alvenaria na abside e tabuado no restante, duas capelas que mostram as pilastras colocadas em viés e decoradas com motivos geométricos do tempo, que também se repetem nas direitas do arco triunfal.
Enquanto que o retábulo-mor, de colunas torsas e arcos do mesmo tipo, bem como a imagem de S. Martinho “de admiravel escultura, e primorosamt.e estufada” são datáveis do século XVII, os colaterais ao cruzeiro e os das capelas laterais, pertencem ao século seguinte e mostram duas colunas, alta cabeceira com sol radiante e ornatos concheados.
As esculturas apresentam um interesse secundário e num nicho pode ver-se uma Virgem com o Menino, dos séculos XVI-XVII e trazida de uma capela destruída, um Santo bispo, gótico, do século XVI, bem como, no colateral da direita, um grande Cristo de madeira
Reveste o frontal da mesa do altar principal um belo painel de azulejos sevilhanos quinhentistas.
Na torre existem dois sinos que se julga terem vindo de Coimbra, onde se encontravam a exercer as suas funções noutros locais e, enquanto num se pode ler S. M. da Cortiça. 1881. Joaquim Amaro da Fonseca, no outro, para além da imagem da Virgem com o Menino, encontra-se insculpido lvis · gomes · de olivv[ei]ra · me fes · lxa · I·02·
A povoação da Sanguinheda, como ficou dito, separou-se nos fins do século XV do senhorio de Pombeiro. A capela antiga foi de tal sorte transformada em 1922, que sofreu mesmo alteração da orientação, nada se conservando do antigo templo, por causa do estado de salitragem do grés das cantarias. É dedicada a Nossa Senhora do Rosário.
Apresenta um certo interesse a imagem de calcário, manuelina e do princípio do século XVI, da Virgem com o Menino, pousando uma coroa de rosas na cabeça duma figura feminina ajoelhada. Data, tal como a capela desaparecida, do tempo do donatário Simão da Cunha.
Quando a povoação da Cortiça foi incendiada, no contexto do já referido incidente da “queima da pólvora”, o sinistro atingiu a capela, que foi reconstruída cerca de 1880-1885, tendo o retábulo atual sido montado com restos de talha dos séculos XVII e XVIII; a imagem do orago, Santo Amaro, de barro, tipo setecentista acompanha uma Senhora da Conceição, de pedra, do século XVI.
No Mucelão ergue-se a capela de Nossa Senhora da Encarnação, fábrica incaracterística, que alberga (ou albergava), datável do século XV, uma pequena Virgem com o Menino, sentada e de calcário.
Nas Pombeiras, a capela aduz, na frente, um alpendre e a escultura do orago, São Nicolau (bispo), de pedra e do fim do século XVI, com as crianças na selha, é corrente.
O visitador da igreja de Paradela da Cortiça ordenava, a 19 de Novembro de 1708, que se fizesse uma capela no terreno cedido por José Cortês, proprietário local, para servir a Sobreira, que então se chamava Estrada. A capela de Nossa Senhora das Neves devia ficar comum às duas freguesias: Paradela e S. Martinho, pelas quais se reparte o mesmo lugar. Contudo, a porta do templo, outrora, encontrava-se voltada para o lado oposto.
O pequeno retábulo, do século XVIII, foi transferido antes de meados do século XX, para a atual fábrica e a escultura do orago, representando a Virgem com o Menino, data dos finais do século XV.
Erguem-se, espalhadas pela freguesia, algumas casas antigas, com relativo mérito, e que ostentam pedras de armas. Na Cortiça, perto da capela, encontra-se uma que outrora pertenceu aos Cunhas de Pombeiro, construída na segunda metade do século XVIII.
O edifício mostra ainda, para além de uma sacada de ângulo assente em forte bacia moldurada, uma das duas fachadas antigas, com portal rematado por frontão curvo onde se encontram inscritas as armas dos Cunhas de Pombeiro, desta feita com as cunhas à direita e os escudetes e os lises à esquerda.
Ainda na freguesia de S. Martinho da Cortiça, mas na povoação da Sobreira, existe uma casa da família Correia de Aguiar, com frontaria de aberturas retangulares e porta de verga curva, ostentando um brasão do início do século XIX. A pedra de armas, em calcário, de tipo francês com chefe de linhas côncavas é esquartelado e apresenta no I as armas da família Correia, no II as da família Rodrigues, no III as da família Vale e no IV as da família Nogueira. Por timbre aduz dois braços postos lado a lado com as mãos espalmadas de carnação e passados com uma fita; o elmo, de grades, mostra o perfil voltado para a direita.
Pero Salgado, tesoureiro de D. Dinis, fez, em 1298, iniciar, a construção da ponte que unia as duas margens do rio Alva no lugar da Ponte da Mucela. De acordo com Francisco Brandão, no seu tempo, ainda existia uma inscrição que lembrava aos vindouros aquele acontecimento.
Composta por quatro arcos, dois maiores sobre o rio e dois mais pequenos para o lado da povoação, viu demolido, aquando da terceira invasão, a fim de cortar a retirada das tropas francesas, o primeiro dos arcos maiores no sentido de Coimbra.
Apesar do intenso movimento que passava sobre ela, apenas com pequenos arranjos tendentes a alargar-lhe o tabuleiro, continuou a servir o fim a que se destinava, mas, ao que julgo, o iluminado Instituto das Estradas, agora que o tráfego foi desviado, resolveu alargá-la, colocar-lhe umas “bonitas” grades amarelas e cobrir os seus medievais talhamares de pedra com cimento. Enfim, uma obra digna dos responsáveis, altamente preocupados com a preservação do património nacional, que tem de ser entendido como valor de identidade e como memória de uma comunidade.
A ponte era um dos indicadores que fornecia identidade às populações de Arganil, até porque funcionava como, se me é permitido dizer, a porta de entrada do termo concelhio; ela ajudava-nos a interpretar e a compreender a história do homem, do povo e até, neste caso bem concreto, a do próprio país.
Tem de ser a preservação deste património, acumulado ao longo de séculos, que nos individualiza e que tem de ser valorizado, porque é ele que marca a nossa identidade cultural e apenas a preservação dessa identidade cultural nos pode permitir uma individualização forte, sobretudo frente a uma Europa que, quer queiramos ou não, acabará por provocar uma certa massificação ou mesmo, entre nós, uma verdadeira colonização.
Os grupos sociais transformam-se ao longo dos tempos e durante a lenta evolução fazem-se sentir etapas de inflexão e de mudança; ora é justamente nesses momentos que se verifica uma maior necessidade de assegurar a permanência dos sinais de identidade próprias de cada aglomerado, sem esquecer os mais recentes que se devem unir aos mais antigos e nós, na atualidade vivemos uma etapa de mudança acelerada.
Orientação bibliográfica: Para além dos meus dois estudos, Concelho de Arganil: história e arte, Arganil, Edição da Santa Casa da Misericórdia de Arganil, 1983 e Arganil, Lisboa, Presença, 1996, servi-me ainda de Vergílio CORREIA; A. Nogueira GONÇALVES, Inventário artístico de Portugal. Distrito de Coimbra, Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 1952, p. 19-21 e de António Manuel de Melo FERNANDES, Pedras de armas do concelho de Arganil [Policopiado].
Regina Anacleto
História


